Comitê Científico Internacional da UNESCO para Redação da História Geral da África
HISTÓRIA GERAL
DA ÁFRICA • I
Metodologia
e pré-história da África
EDITOR J. KI-ZERBO
UNESCO Representação no BRASIL
Ministério da Educação do BRASIL
Universidade Federal de São Carlos
HISTÓRIA GERAL DA ÁFRICA • I
Metodologia e pre historia
da África
Comite Cientifico Internacional da UNESCO para Redacao da Historia Geral da Africa
Coleção História Geral da África da UNESCO
Volume I Metodologia e pré-história da África
(Editor J. Ki-Zerbo)
Volume II África antiga
(Editor G. Mokhtar)
Volume III África do século VII ao XI
(Editor M. El Fasi)
(Editor Assistente I. Hrbek)
Volume IV África do século XII ao XVI
(Editor D. T. Niane)
Volume V África do século XVI ao XVIII
(Editor B. A. Ogot)
Volume VI África do século XIX à década de 1880
(Editor J. F. A. Ajayi)
Volume VII África sob dominação colonial, 1880-1935
(Editor A. A. Boahen)
Volume VIII África desde 1935
(Editor A. A. Mazrui)
(Editor Assistente C. Wondji)
Os autores são responsáveis pela escolha e apresentação dos fatos contidos neste livro,
bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO,
nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e apresentação do
material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte
da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região
ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
Comite Cientifico Internacional da UNESCO para Redacao da Historia Geral da Africa
Prefácio
por M. Amadou Mahtar M’Bow,
Diretor Geral da UNESCO (1974-1987)
Prefácio XXI
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie esconderam do
mundo a real história da África. As sociedades africanas passavam por sociedades
que não podiam ter história. Apesar de importantes trabalhos efetuados desde
as primeiras décadas do século XX por pioneiros como Leo Frobenius, Maurice
Delafosse e Arturo Labriola, um grande número de especialistas não africanos,
ligados a certos postulados, sustentavam que essas sociedades não podiam ser
objeto de um estudo científico, notadamente por falta de fontes e documentos
escritos.
Se a Iliada e a Odisseia podiam ser devidamente consideradas como fontes
essenciais da história da Grécia antiga, em contrapartida, negava-se todo valor
à tradição oral africana, essa memória dos povos que fornece, em suas vidas, a
trama de tantos acontecimentos marcantes. Ao escrever a história de grande
parte da África, recorria-se somente a fontes externas à África, oferecendo
uma visão não do que poderia ser o percurso dos povos africanos, mas daquilo
que se pensava que ele deveria ser. Tomando frequentemente a “Idade Média”
europeia como ponto de referência, os modos de produção, as relações sociais
tanto quanto as instituições políticas não eram percebidos senão em referência
ao passado da Europa.
Com efeito, havia uma recusa a considerar o povo africano como o criador
de culturas originais que floresceram e se perpetuaram, através dos séculos, por
vias que lhes são próprias e que o historiador só pode apreender renunciando a
certos preconceitos e renovando seu método.
Da mesma forma, o continente africano quase nunca era considerado
como uma entidade histórica. Em contrário, enfatizava-se tudo o que pudesse
reforçar a ideia de uma cisão que teria existido, desde sempre, entre uma “África
branca” e uma “África negra” que se ignoravam reciprocamente. Apresentava-se
frequentemente o Saara como um espaço impenetrável que tornaria impossíveis
misturas entre etnias e povos, bem como trocas de bens, crenças, hábitos e ideias
entre as sociedades constituídas de um lado e de outro do deserto. Traçavam-se
fronteiras intransponíveis entre as civilizações do antigo Egito e da Núbia e
aquelas dos povos subsaarianos.
Certamente, a história da África norte-saariana esteve antes ligada àquela da
bacia mediterrânea, muito mais que a história da África subsaariana mas, nos
dias atuais, é amplamente reconhecido que as civilizações do continente africano,
pela sua variedade linguística e cultural, formam em graus variados as vertentes
históricas de um conjunto de povos e sociedades, unidos por laços seculares.
Um outro fenômeno que grandes danos causou ao estudo objetivo do passado
africano foi o aparecimento, com o tráfico negreiro e a colonização, de estereótipos
raciais criadores de desprezo e incompreensão, tão profundamente consolidados
que corromperam inclusive os próprios conceitos da historiografia. Desde que
foram empregadas as noções de “brancos” e “negros”, para nomear genericamente
os colonizadores, considerados superiores, e os colonizados, os africanos foram
levados a lutar contra uma dupla servidão, econômica e psicológica. Marcado
pela pigmentação de sua pele, transformado em uma mercadoria entre outras,
e destinado ao trabalho forçado, o africano veio a simbolizar, na consciência de
seus dominadores, uma essência racial imaginária e ilusoriamente inferior: a de
negro. Este processo de falsa identificação depreciou a história dos povos africanos
no espírito de muitos, rebaixando-a a uma etno-história, em cuja apreciação das
realidades históricas e culturais não podia ser senão falseada.
A situação evoluiu muito desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em
particular, desde que os países da África, tendo alcançado sua independência,
começaram a participar ativamente da vida da comunidade internacional e
dos intercâmbios a ela inerentes. Historiadores, em número crescente, têm
se esforçado em abordar o estudo da África com mais rigor, objetividade e
abertura de espírito, empregando – obviamente com as devidas precauções –
fontes africanas originais. No exercício de seu direito à iniciativa histórica, os
próprios africanos sentiram profundamente a necessidade de restabelecer, em
bases sólidas, a historicidade de suas sociedades.
Prefácio XXIII
É nesse contexto que emerge a importância da Historia Geral da Africa, em
oito volumes, cuja publicação a Unesco começou.
Os especialistas de numerosos países que se empenharam nessa obra,
preocuparam-se, primeiramente, em estabelecer-lhe os fundamentos teóricos
e metodológicos. Eles tiveram o cuidado em questionar as simplificações
abusivas criadas por uma concepção linear e limitativa da história universal,
bem como em restabelecer a verdade dos fatos sempre que necessário e possível.
Eles esforçaram-se para extrair os dados históricos que permitissem melhor
acompanhar a evolução dos diferentes povos africanos em sua especificidade
sociocultural.
Nessa tarefa imensa, complexa e árdua em vista da diversidade de fontes e
da dispersão dos documentos, a UNESCO procedeu por etapas. A primeira
fase (1965-1969) consistiu em trabalhos de documentação e de planificação da
obra. Atividades operacionais foram conduzidas in loco, através de pesquisas de
campo: campanhas de coleta da tradição oral, criação de centros regionais de
documentação para a tradição oral, coleta de manuscritos inéditos em árabe e
ajami (línguas africanas escritas em caracteres árabes), compilação de inventários
de arquivos e preparação de um Guia das fontes da historia da Africa, publicado
posteriormente, em nove volumes, a partir dos arquivos e bibliotecas dos países
da Europa. Por outro lado, foram organizados encontros, entre especialistas
africanos e de outros continentes, durante os quais se discutiu questões
metodológicas e traçou-se as grandes linhas do projeto, após atencioso exame
das fontes disponíveis.
Uma segunda etapa (1969 a 1971) foi consagrada ao detalhamento e à
articulação do conjunto da obra. Durante esse período, realizaram-se reuniões
internacionais de especialistas em Paris (1969) e Addis-Abeba (1970), com o
propósito de examinar e detalhar os problemas relativos à redação e à publicação
da obra: apresentação em oito volumes, edição principal em inglês, francês e
árabe, assim como traduções para línguas africanas, tais como o kiswahili, o
hawsa, o peul, o yoruba ou o lingala. Igualmente estão previstas traduções para
o alemão, russo, português, espanhol e chinês1, além de edições resumidas,
destinadas a um público mais amplo, tanto africano quanto internacional.
1 O volume I foi publicado em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano, kiswahili,
peul e português; o volume II, em inglês, árabe, chinês, coreano, espanhol, francês, hawsa, italiano,
kiswahili, peul e português; o volume III, em inglês, árabe, espanhol e francês; o volume IV, em inglês,
árabe, chinês, espanhol, francês e português; o volume V, em inglês e árabe; o volume VI, em inglês,
árabe e francês; o volume VII, em inglês, árabe, chinês, espanhol, francês e português; o VIII, em inglês
e francês.
A terceira e última fase constituiu-se na redação e na publicação do trabalho.
Ela começou pela nomeação de um Comitê Científico Internacional de trinta e
nove membros, composto por africanos e não africanos, na respectiva proporção
de dois terços e um terço, a quem incumbiu-se a responsabilidade intelectual
pela obra.
Interdisciplinar, o método seguido caracterizou-se tanto pela pluralidade
de abordagens teóricas quanto de fontes. Dentre essas últimas, é preciso
citar primeiramente a arqueologia, detentora de grande parte das chaves da
história das culturas e das civilizações africanas. Graças a ela, admite-se, nos
dias atuais, reconhecer que a África foi, com toda probabilidade, o berço da
humanidade, palco de uma das primeiras revoluções tecnológicas da história,
ocorrida no período Neolítico. A arqueologia igualmente mostrou que, na
África, especificamente no Egito, desenvolveu-se uma das antigas civilizações
mais brilhantes do mundo. Outra fonte digna de nota é a tradição oral que,
até recentemente desconhecida, aparece hoje como uma preciosa fonte para
a reconstituição da história da África, permitindo seguir o percurso de seus
diferentes povos no tempo e no espaço, compreender, a partir de seu interior, a
visão africana do mundo, e apreender os traços originais dos valores que fundam
as culturas e as instituições do continente.
Saber-se-á reconhecer o mérito do Comitê Científico Internacional
encarregado dessa Historia geral da Africa, de seu relator, bem como de seus
coordenadores e autores dos diferentes volumes e capítulos, por terem lançado
uma luz original sobre o passado da África, abraçado em sua totalidade, evitando
todo dogmatismo no estudo de questões essenciais, tais como: o tráfico negreiro,
essa “sangria sem fim”, responsável por umas das deportações mais cruéis da
história dos povos e que despojou o continente de uma parte de suas forças
vivas, no momento em que esse último desempenhava um papel determinante
no progresso econômico e comercial da Europa; a colonização, com todas suas
consequências nos âmbitos demográfico, econômico, psicológico e cultural;
as relações entre a África ao sul do Saara e o mundo árabe; o processo de
descolonização e de construção nacional, mobilizador da razão e da paixão de
pessoas ainda vivas e muitas vezes em plena atividade. Todas essas questões
foram abordadas com grande preocupação quanto à honestidade e ao rigor
científico, o que constitui um mérito não desprezível da presente obra. Ao fazer o
balanço de nossos conhecimentos sobre a África, propondo diversas perspectivas
sobre as culturas africanas e oferecendo uma nova leitura da história, a Historia
geral da Africa tem a indiscutível vantagem de destacar tanto as luzes quanto as
sombras, sem dissimular as divergências de opinião entre os estudiosos.
Ao demonstrar a insuficiência dos enfoques metodológicos amiúde utilizados
na pesquisa sobre a África, essa nova publicação convida à renovação e ao
aprofundamento de uma dupla problemática, da historiografia e da identidade
cultural, unidas por laços de reciprocidade. Ela inaugura a via, como todo
trabalho histórico de valor, para múltiplas novas pesquisas.
É assim que, em estreita colaboração com a UNESCO, o Comitê Científico
Internacional decidiu empreender estudos complementares com o intuito de
aprofundar algumas questões que permitirão uma visão mais clara sobre certos
aspectos do passado da África. Esses trabalhos, publicados na coleção UNESCO
– Historia geral da Africa: estudos e documentos, virão a constituir, de modo útil,
um suplemento à presente obra2. Igualmente, tal esforço desdobrar-se-á na
elaboração de publicações versando sobre a história nacional ou sub-regional.
Essa Historia geral da Africa coloca simultaneamente em foco a unidade
histórica da África e suas relações com os outros continentes, especialmente
com as Américas e o Caribe. Por muito tempo, as expressões da criatividade dos
afrodescendentes nas Américas haviam sido isoladas por certos historiadores em
um agregado heteróclito de africanismos; essa visão, obviamente, não corresponde
àquela dos autores da presente obra. Aqui, a resistência dos escravos deportados
para a América, o fato tocante ao marronage [fuga ou clandestinidade] político
e cultural, a participação constante e massiva dos afrodescendentes nas lutas da
primeira independência americana, bem como nos movimentos nacionais de
libertação, esses fatos são justamente apreciados pelo que eles realmente foram:
vigorosas afirmações de identidade que contribuíram para forjar o conceito
universal de humanidade. É hoje evidente que a herança africana marcou, em
maior ou menor grau, segundo as regiões, as maneiras de sentir, pensar, sonhar
e agir de certas nações do hemisfério ocidental. Do sul dos Estados Unidos ao
norte do Brasil, passando pelo Caribe e pela costa do Pacífico, as contribuições
culturais herdadas da África são visíveis por toda parte; em certos casos, inclusive,
elas constituem os fundamentos essenciais da identidade cultural de alguns dos
elementos mais importantes da população.
2 Doze números dessa série foram publicados; eles tratam respectivamente sobre: n. 1 − O povoamento
do Egito antigo e a decodificação da escrita meroítica; n. 2 − O tráfico negreiro do século XV ao século
XIX; n. 3 – Relações históricas através do Oceano Índico; n. 4 – A historiografia da África Meridional;
n. 5 – A descolonização da África: África Meridional e Chifre da África [Nordeste da África]; n. 6 –
Etnonímias e toponímias; n. 7 – As relações históricas e socioculturais entre a África e o mundo árabe; n.
8 – A metodologia da história da África contemporânea; n. 9 – O processo de educação e a historiografia
na África; n. 10 – A África e a Segunda Guerra Mundial; n. 11 – Líbia Antiqua; n. 12 – O papel dos
movimentos estudantis africanos na evolução política e social da África de 1900 a 1975.
Igualmente, essa obra faz aparecerem nitidamente as relações da África com
o sul da Ásia através do Oceano Índico, além de evidenciar as contribuições
africanas junto a outras civilizações em seu jogo de trocas mútuas.
Estou convencido de que os esforços dos povos da África para conquistar
ou reforçar sua independência, assegurar seu desenvolvimento e consolidar
suas especificidades culturais devem enraizar-se em uma consciência histórica
renovada, intensamente vivida e assumida de geração em geração.
Minha formação pessoal, a experiência adquirida como professor e, desde os
primórdios da independência, como presidente da primeira comissão criada com
vistas à reforma dos programas de ensino de história e de geografia de certos
países da África Ocidental e Central, ensinaram-me o quanto era necessário,
para a educação da juventude e para a informação do público, uma obra de
história elaborada por pesquisadores que conhecessem desde o seu interior
os problemas e as esperanças da África, pensadores capazes de considerar o
continente em sua totalidade.
Por todas essas razões, a UNESCO zelará para que essa Historia Geral da
Africa seja amplamente difundida, em numerosos idiomas, e constitua base
da elaboração de livros infantis, manuais escolares e emissões televisivas ou
radiofônicas. Dessa forma, jovens, escolares, estudantes e adultos, da África e de
outras partes, poderão ter uma melhor visão do passado do continente africano e
dos fatores que o explicam, além de lhes oferecer uma compreensão mais precisa
acerca de seu patrimônio cultural e de sua contribuição ao progresso geral da
humanidade. Essa obra deverá então contribuir para favorecer a cooperação
internacional e reforçar a solidariedade entre os povos em suas aspirações
por justiça, progresso e paz. Pelo menos, esse é o voto que manifesto muito
sinceramente.
Resta-me ainda expressar minha profunda gratidão aos membros do
Comitê Científico Internacional, ao redator, aos coordenadores dos diferentes
volumes, aos autores e a todos aqueles que colaboraram para a realização desta
prodigiosa empreitada. O trabalho por eles efetuado e a contribuição por eles
trazida mostram, com clareza, o quanto homens vindos de diversos horizontes,
conquanto animados por uma mesma vontade e igual entusiasmo a serviço da
verdade de todos os homens, podem fazer, no quadro internacional oferecido
pela UNESCO, para lograr êxito em um projeto de tamanho valor científico
e cultural. Meu reconhecimento igualmente estende-se às organizações e aos
governos que, graças a suas generosas doações, permitiram à UNESCO publicar
essa obra em diferentes línguas e assegurar-lhe a difusão universal que ela merece,
em prol da comunidade internacional em sua totalidade.
Compartilhe com seus amigos: |