Capítulo XVII Invencível obstinação
No dia seguinte o arraial amanheceu em extraordinária agitação. O assassinato do Minhoto tinha enchido de pavor, consternação e sobressalto todos os emboabas. Receavam que fosse o prelúdio de mais matança, e os mais considerados e ricos de entre eles, apenas despontou o sol, se dirigiam à casa do capitão-mor', reclamando providências enérgicas e medidas de segurança, que pusessem suas vidas e propriedades ao abrigo de tão audaciosos e ferozes inimigos.
Por seu lado o capitão-mor também andava em contínuo movimento dando ordens e ativando diligências a fim de descobrir o autor ou autores da morte do Minhoto. Ia-se instaurar uma imensa devassa e fazerem-se as mais minuciosas pesquisas. Nenhum trabalhador livre ou escravo, nenhum paulista ou emboaba, de quem se pudesse esperar qualquer informação, pôde nesse dia ir ao serviço; todos foram intimados para a devassa.
Na varanda e no pátio do edifício formigava gente de toda a qualidade. Via-se a figura do capitão-mor' respeitável e simpática vociferando e dando ordens, entrando e saindo.
Só Fernando parecia calmo e satisfeito no meio do geral reboliço e inquietação. Sentia de feito dentro d’alma íntimo regozijo, que procurava dissimular com certo ar sombrio e preocupado. As coisas tocavam ao ponto, em que desejava vê-las. Que um levante se tramava era para ele cousa fora de toda a dúvida; os sintomas eram evidentes; o mameluco já o havia denunciado em parte e a morte do Minhoto era por certo o prelúdio de atentados em maior escala. Mas arrogante e fanfarrão como era contava abafar com um grito a insurreição, e esmagar os revoltosos, cuja sorte julgava ter já fechada nas, mãos. Todavia, para salvar aparências, não deixava de aprovar as medidas de cautela e segurança, que o capitão-mor ia tomando; mas por meio indiretos; - sempre fora esta sua linha de conduta,
longe de procurar prevenir qualquer insurreição, se esforçava por provocá-la; folgaria que ela se manifestasse por atos bem .claros e positivos. Só assim poderia lançar a garra sobre a principal vítima, que queria imolar, e feri-la sem piedade.
O assassinato do Minhoto abriu-lhe a porta para atos da mais violenta e brutal perseguição. Os paulistas aterrados trataram em grande parte de esconder-se. Os que o não puderam fazer, homens e mulheres, foram agarrados, sujeitos a bolos, açoites e torturas para confessarem quem matara o Minhoto, se havia plano de revolta, e declararem quais os seus cabeças.
Maurício, Gil e Antônio não podiam deixar de ser inquiridos. O capitão-mor deu ordem a Fernando, que mandasse trazê-los à sua presença.
- Para que fim ? - perguntou Fernando.
- Que pergunta! - replicou crespamente o capitão-mor; - para dizerem o que sabem, está visto; e se também forem traidores; ai deles !...
- Pois também, Maurício, - disse Fernando com acento da mais transparente ironia, - o vosso fiel e dedicado Maurício pode incorrer em suspeitas...
- Se nos é fiel, muito serviço nos poderá prestar na presente conjuntura; se não é, talvez também já se tenha posto ao fresco, ou facilmente se trairá...
- É escusado mandar chamá-los, - atalhou Fernando incivilmente; - ou não serão encontrados, por que andam tratando de seus negócios, - Fernando sublinhou esta palavra com certa inflexão irônica, - ou se aqui comparecerem, será para vos embair de novo, como vos tem embaído até hoje. Demais, senhor capitão-mor', se os paulistas andam forjando uma revolta, quais podem ser os cabeças...
- Que provas tem disso, Fernando ?... queres que eu creIa tão de leve em tão abominável aleive !...
- As provas não tardarão a aparecer do modo o mais patente e à luz do sol. Em vez de os inquirir, melhor seria agarrá-los desde já e trancá-los na masmorra; mas...
- Mas o que, Fernando ?...
- Mas é melhor esperar, que arrojem de todo a máscara, com que até aqui se têm disfarçado em amigos.
- Não; melhor é prevenir o mal. Presos e castigados os chefes, os outros se submeterão...
- Mas prender e castigar a quem, e por que? Se ainda nenhuma prova positiva temos nem mesmo da existência de um plano de levante, como havemos de saber quais os chefes?... É preciso colhê-los a todos em flagrante, e é isso que espero conseguir em menos tempo do que vossa mercê pensa.
- Não te entendo; pois não me dizias a pouco, que tem certeza?
- Sim, senhor; certeza tenho-a eu, mas faltam as provas, sem as quais nada poderemos fazer regularmente. Tranqüilize-se porém vossa mercê, que elas de hoje para amanhã aparecerão.
- Eu tranqüilizar-me, quando, segundo ainda com toda a segurança, sou alvo da mais revoltante aleivosia, quando sinto o seio mordido pela serpente, que nele abriguei?! Oh! Fernando! Fernando! Estás realmente certo ?... não te iludem as aparências... ou embustes de algum inimigo de Maurício ?...
- Esperemos, senhor; é por pouco tempo; eu o em prazo só até amanhã; suspenda até então seu juízo.
- Pois bem; suspenderei, e espero que a inocência ao menos de Maurício ficará patente.
- Ou sua traição desmascarada.
Muito de propósito e refletidamente, Fernando se empenhara em impedir que os dois jovens paulistas com parecessem à devassa. Semelhante medida os poria de sobreaviso; logo que desconfiassem, que eram também alvo de suspeitas, procurariam por qualquer meio evitar
o golpe certeiro, com que pretendia aniquilá-las. Cumpria-lhe pois deixá-las na descuidosa seguridade, em que os supunha, até que tivesse, como esperava, provas patentes e exuberantes, de que eles maquinavam às ocultas contra o capitão-mor e os portugueses, e para isso descansava na astúcia e habilidade satânica do seu mameluco.
O dia quase todo passou-se em investigações, pesquisas e inquéritos. As mais fortes suspeitas do atentado da véspera recaíram sobre Calixto, o amante preferido de Helena, rival do Minhoto, e que com ele tinha querelas e ajustes de contas antigas. Calixto foi procurado pelos algozes do capitão-mor por toda a povoação e suas imediações; não foi encontrado em parte alguma; novo e forte motivo de suspeição contra ele.
Entretanto Maurício e Gil não se achavam em tão completa seguridade, como supunha Fernando. O próprio Tiago, de cujas manhas e habilidade ele esperava com tanta confiança o pleno sucesso de seus planos, já na noite antecedente, como sabemos, tinha posto de sobreaviso a todos os conspiradores. Em razão desse aviso, e também das perseguições resultantes do assassinato do Minhoto, nenhum deles nesse dia apareceu na povoação achando-se todos refugiados na caverna, à exceção de Maurício, Gil e Antônio. Este vagueava às escondidas em roda da Casa do capitão-mor, como gato do mato, que negaceia uma pomba, por motivos, que daqui a pouco saberemos. Gil, pela mais extremosa dedicação a seu amigo arrostando uma situação perigosíssima instava em vão com ele para que deixasse quanto antes a povoação; Maurício, porém, queda e inabalável em sua casa obstinava-se em ali permanecer até à noite.
O sol já ia bem baixo no horizonte, e ainda Gil não pudera demover o amigo de seu pertinaz propósito.
- Só um cego, - dizia-lhe Gil, não vê, que aquele endiabrado mameluco, que ontem não conseguiu vingar-se de ti, e de Antônio na gruta, e que de lá fugiu escorraçado, nos irá denunciar, se é que já não denunciou.
- Mas julgas, que se ele quisesse revelar alguma; cousa já não o teria feito e se o tivesse feito, estaríamos aqui ainda livres e tranqüilos? - objetava Maurício procurando ainda razões especiosas para justificar sua fatal resolução evitando tocar no verdadeiro motivo, que ali o prendia.
- Não sei, - respondeu Gil, - mas daqui à noite ainda vai tempo, e Deus sabe o que acontecerá. Acredita-me, Maurício, não estamos aqui seguros, e considera, que conosco vamos sacrificar também nossos patrícios que nos esperarão debalde.
- Vai tu só agora, Gil; se não me matarem ou prenderem, o que acho difícil, lá estarei antes de meia noite. Vai; eu te peço, em nome deles e da nossa amizade. Quero ser o único sacrificado.
- E eu quero salvar-te a ti, e a honra de tua palavra, que é a de todos os paulistas.
- Deixem corro só por minha conta a minha vida e a minha honra.
- Que cegueira, meu Deus! - murmurou Gil na mais angustiosa impaciência; - Maurício, estarás louco ?...
- Não sei...pode ser. Mas sinto, que me é forçoso aqui ficar até a noite... ordena-me o coração, que fique aqui ainda, que não fuja...
- Senão, quando o raio cair-te em casa.
- Os raios do céu não podem ferir quem procura amparar um anjo. Os raios da terra... esses não me fazem medo.
- Eis volta de novo à tua fatal loucura!... O que pretendes pois Maurício?... o que esperas?...
- Espero a noite, e à sombra dela pretendo conspirar contra o capitão-mor e sua filha para salvá-los a eles e punir nossos opressores.
- Salvem-se!... fujam! - bradou a voz de uma pessoa que entrava precipitadamente. Era Antônio, que vinha arquejante de cansaço.
- Que te dizia eu, Maurício !... - disse Gil com acento indefinível.
- Vossemecês estão perdidos, se não fogem neste instante. Venho da casa do patrão velho neste momento; o maldito mameluco acaba de contar neste instante ao senhor Fernando tudo quanto estamos fazendo.
- Mas como pudeste lá ir ? - perguntou Gil. - Não se importe com isso, patrão. O certo é que Antônio lá esteve; ninguém o viu e ele viu e ouviu tudo.
- Que mais esperas, Maurício? - disse Gil a seu amigo. – Traindo-nos.
- Daqui não saio, enquanto for dia, - respondeu Maurício com acento de inquebrantável firmeza. – Vai tu Gil; escapa ao ódio de nossos perseguidores; vai à caverna dirigir as coisas. Se a mão dos algozes não me apanhar, antes da meia noite lá me acharei. Mas tu, Antônio, fica ainda um momento; preciso de ti.
|