PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS
01. A apelação, no processo penal, confere ao Tribunal o conhecimento da matéria atacada e, também, da que se permite conhecer de ofício. É a regra: tantum devolutum quantum appellatum – vai ao grau superior todo o quanto se apelou – (art. 574, caput, c/c art. 599, do Cód. de Proc. Penal).
A proibição da reformatio in pejus diz com o aludido efeito devolutivo dos recursos. Hoje, reforçado por outra regra, – dita da personalidade, ou da pessoalidade do recurso – segundo a qual o recorrente não há de ter piorada sua situação material e processual, se inocorrente recurso da outra parte (art. 617, do Cód. de Proc. Penal).
Conceitua-se a reformatio in pejus, então, como a reforma, modificação ou nulidade da sentença penal condenatoria, em sentido mais gravoso, para o acusado, sendo ele o único recorrente. É o que se impede.
02. No denominado processo penal romano, do último período, outro emergia o sistema. A apelação permitia ao Tribunal Superior novo e pleno julgamento da causa. Assim, de modo eventual, contrário ao apelante. Era o chamado “benefício comum”, ou communio appellationis1.
A comunidade da apelação, ou regra da realidade, adotou-a o direito luso-brasileiro. O mandamento achava-se presente nas três Ordenações do Reino. No fim do século XVIII, princípio do XIX, o primeiro importante processualista penal, em língua portuguesa, Pereira e Sousa, afirmava: “A apelação é comum a uma e outra parte”2.
A vedação da reformatio in pejus não tem lugar, se existente o “benefício comum”: o recurso devolve ao Tribunal o conhecimento da matéria não impugnada, assim, favorecendo quem não recorrereu.
03. O estudo da inibição da reformatio in pejus principia pela atenção as regras da ampla defesa do acusado; da interdição de pronunciamento ultra e extra petita; e da prevalência do favor rei ou libertatis3.
A garantia constitucional da ampla defesa diz com o direito de saber dos prazos recursais; da ciência de seu início; requisitos e do andamento da apelação. Conhecer-lhe, ainda, os limites, ou a devolutividade, sempre arredando a surpresa. Importa, também, a bilateralidade da audiência, durante o procedimento recursal. Já a contraditoriedade acha-se, à evidência, ínsita no apelo e seus acidentes. Em nenhuma fase, ou instante do procedimento, pouco importando o grau de jurisdição, o acusado deve ver-se tratado como estranho, na causa. Direito, por fim, a que eventual prova, emergente no correr do procedimento recursal, desponte, legitimamente, obtida ou produzida. Se irromper a necessidade de provas, porque pertinentes, relevantes e idôneos os meios, elas importam ao imputado. Não há preclusão, em matéria probatória, mas sem cabência converter o julgamento em diligência para produzir prova contra o acusado, único apelante.
O Tribunal Superior, em princípio, não deve decidir ultra ou extra petita. Não há de julgar nem a mais, nem fora do pedido. Encontra-se, portanto, balizado; obstada a decisão contra o próprio apelante. Sempre se poderia argumentar que tal idéia impede o procedimento espontâneo do juiz, em razão do nemo judex sine actore e ne procedat judex ex officio4.
A proibição da reformatio in pejus guarda, entretanto, razões mais políticas, do que lógicas. Emerge possível garantir a ampla defesa; vedar as decisões ultra e extra petita e, ainda assim, permitir o agravamento da situação do recorrente, ou reforma para pior.
A nova legislação processual penal italiana conservou o tantum appellatum (art. 597, n. 3)5; mas, por isso mesmo pode admitir o recurso adesivo de qualquer das partes, sob a denominação de appello incidentale (art. 595)6. Sem maior vigor, pois, a vedação da reformatio in pejus, não obstante o discurso garantista.
Toda a legislação processual penal moderna, dos Estados democráticos, tende a consagrar o favor rei, com maior ou menor ênfase. O processo penal nasce, desenvolve-se e se estrutura, em atenção a liberdade jurídica do acusado. Em outras palavras, no conflito de alta relevância social entre o jus puniendi e jus libertatis prefere-se o segundo. Na interpretação e na aplicação das normas de direito processual penal, surgindo antagonismo, escolhe-se a mais favorável ao acusado.
Basta lembrar, na lei processual penal, do contraditorio indispositivo (arts. 262 a 266); da absolvição fraca, dubitativa, ou por falta de provas (art. 386, n. VI); a extensão da decisão favorável ao co-acusado, não apelante (art. 580); a existência de recursos privativos da defesa (arts. 609 parág. único e 607); o preceito sobre empate de votos nos julgamento de recursos ( art. 615, § 1o); e a vedação da reformatio in pejus (arts. 617 e 626, parág. único). Sem esquecer o direito sumular (súmula 160 e 453, do Supremo Tribunal Federal).
04. O Código de Processo Penal vigorante permitiu que o Tribunal, Câmara ou Turma, proibidos de agravar a pena, em recurso exclusivo da defesa, operassem, entretanto, a emendatio libelli (arts. 383 e 617). Entenda-se: “dar ao fato definição jurídica diversa da que constar na queixa ou na denúncia”, desde que inocorra qualquer gravame jurídico ao increpado; não bastando a mantença da reprimenda. Recorde-se a súmula 453, que ajuda a caminhar em tal direção: “Não se aplicam à Segunda Instância o artigo 384 e parágrafo único, do Código de Processo Penal, que possibilitam dar nova definição jurídica ao fato delituoso, em virtude de circunstância elementar não contida, explicita ou implicitamente, na denúncia ou queixa”.
05. A jurisprudência incumbiu-se, na mesma linha, de impedir a denominada reformatio in pejus indireta. Assim, anulada a decisão condenatoria, mediante recurso, tão só, do arguido; o Juiz que proferir nova sentença achar-se-á jungindo ao máximo da pena, imposta na sentença invalida. Importa assentar: a sentença nula passa a ter força e efeito sobre a nova e válida. Desútil reclamar da lógica, em face do favor rei.
Assegura-se que a proibição da reformatio in pejus indireta não vigora, ao cuidar-se de sentença proferida pelo Tribunal do Júri. É preciso notar que, se o novo Conselho de Sentença conservar o entendimento do anterior, o Juiz Presidente encontra-se forçado a manter o quantum da pena imposta, na sentença anulada. A soberania é dos veredictos (art. 5o, inc. XXXVIII, letra “c”, da Const. da República).
Observe-se, de outra sorte, que emergindo a sentença inexistente torna-se muito difícil sustentar a inibição da reformatio in pejus indireta.
06. Fala-se em reformatio in pejus benéfica, ou permitida, se e quando ocorre agravamento aparente, da situação do acusado; para lhe possibilitar ao obtenção de maior proveito, ou vantagem, no plano prático. Exemplicam os autores com pequeno aumento da pena para viabilizar o protesto por novo Júri7 (arts. 607 e 608, do Cód. de Proc. Penal).
07. O apelo exsurgindo, tão só, da acusação, ergue-se a questão de poder, ou não o Tribunal decidir, de modo favorável, ao acusado. Em outras palavras: suceder reformatio in pejus, mas, para a acusação. Tal possibilidade a doutrina, de maneira equivocada, denominou reformatio in mellius. O tema não é pacífico. Uns entendem que a igualdade de tratamento, que se deve dispensar às partes, obsta a solução benéfica ao acusado. Argumentam, também, que a norma proibitiva da reformatio in pejus, em verdade, unicamente, estabelece limites, para as sentenças de desclassificação. Dizem que a solução acha-se no habeas corpus ou na revisão criminal e jamais no alargamento do limite objetivo do recurso8. Outros invocam toda a matéria, que se pode conhecer de modo espontâneo; com a ressalva da súmula 160, do Supremo Tribunal Federal: “É nula a decisão do Tribunal que acolhe, contra o réu, nulidade não argüida no recurso de acusação, ressalvados os casos de recurso de ofício”. Além de lembrarem o favor rei e o libertatis, mais a economia processual9.
São Paulo, 22 de junho de 1999.
Revisto em parte, 09/07/1999.
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